Os primeiros laços: o que a psicanálise revela sobre alimentação e desenvolvimento infantil
- Patricia Vieira e Maria Clara Vieira

- 5 de dez.
- 6 min de leitura
Do olhar que acolhe ao alimento que nutre, os primeiros anos de vida constituem um território decisivo para o desenvolvimento humano, influenciando vínculos, comportamentos, capacidade simbólica e relação com o próprio corpo. Saiba mais!
Os primeiros meses de vida de um bebê são marcados por uma intensidade que muitas vezes passa despercebida aos olhos do mundo, mas não ao olhar atento da psicologia e da psicanálise. É nesse período — cheio de descobertas, fusões, adaptações e desafios — que começam a se formar as bases da vida psíquica, emocional e relacional do sujeito. A amamentação, o cuidado diário, os primeiros vínculos e até as dificuldades da rotina compõem um território crucial, no qual afeto e sobrevivência caminham lado a lado.
Ao mesmo tempo, é nesse início que também emergem as maiores angústias parentais: a amamentação que não acontece como esperado, o sono fragmentado, a introdução alimentar, a pressão social e a sensação de solidão que tantas mulheres vivem no puerpério. Essas experiências moldam não apenas a criança, mas toda a dinâmica familiar, exigindo acolhimento, orientação e um olhar profissional qualificado.
Para aprofundar essas questões e esclarecer como se dá essa construção psíquica que começa no colo, entrevistamos Patricia Vieira, profissional do Espaço Serivê. Confira seu breve currículo a seguir.
Patricia Vieira – Pedagoga formada pela PUC-SP, psicopedagoga pelo Instituto Sedes Sapientiae e psicanalista, membro efetivo do Departamento de Formação em Psicanálise do mesmo instituto.
Pós-graduada em Transtornos Alimentares pelo Instituto ESPE, Patricia também é organizadora do livro Medicação e medicalização e coautora de A escola para todos e para cada um e Campos clínicos, educacional e social: o pensamento de Silvia Bleichmar.
Atua como psicanalista clínica, supervisora clínica em psicanálise e professora do primeiro ano do curso Fundamentos da Psicanálise e sua Prática Clínica do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
Para facilitar sua leitura, dividimos nosso texto por tópicos. São eles:
Boa leitura!
Da fusão à autonomia: o que a psicanálise revela sobre os primeiros meses
A psicanálise entende que a constituição do sujeito começa muito antes do nascimento. Para Patricia, esse processo se inicia no momento em que os pais passam a sonhar com o bebê, imaginar seu nome, seu rosto e projetar uma história para ele. “O bebê já recebe um lugar psíquico mesmo antes de nascer, e é a partir desse lugar que ele começa a se constituir como sujeito”, afirma.
Ela lembra a importância do pensamento de Piera Aulagnier, psicanalista italiana, que afirmava que a criança carrega um nome e um projeto que moldam sua subjetividade. “Esse nome não é só uma escolha estética. Ele está ligado ao lugar que o bebê ocupa no imaginário dos pais”, explica Patricia.
Nos primeiros meses de vida, destaca ela, o bebê está imerso em intenso desamparo biológico e psíquico — um estado que só pode ser apaziguado pela presença do outro. “É um verdadeiro caos”, diz. “O bebê depende dos adultos na mesma proporção da sua fragilidade.”
Nesse período, todo gesto de cuidado carrega também um valor simbólico. Trocar, dar banho, alimentar, cantar, falar, olhar nos olhos — tudo isso constrói as bases para o desenvolvimento emocional e cognitivo da criança. Patricia ressalta que quando usa o termo função materna, não se refere à mãe biológica, mas ao papel de cuidado que pode ser desempenhado por qualquer pessoa que exerça essa função de forma sensível e estável.
Nos primeiros seis ou sete meses, explica ela, é essencial que o bebê viva um estado fusional com sua figura cuidadora. “Nesse momento, ele acredita que ele e o mundo são a mesma coisa. Isso é saudável no começo e fundamental para a sobrevivência psíquica e biológica”, diz.
Embora hoje haja mais abertura para falar sobre o puerpério, Patricia observa que ainda é comum encontrar mulheres vivendo esse período em profunda solidão, especialmente por causa da amamentação e da intensa dependência do bebê. “A rede de apoio precisa existir de verdade”, afirma. “Às vezes, ajudar é só segurar o bebê para que essa mulher tome um banho ou consiga comer com calma. Esses pequenos gestos fazem uma diferença enorme.”
Mas ela ressalta que esse estado fusional tem um tempo para terminar. Se prolongado além do necessário, ele pode comprometer o desenvolvimento. É nesse ponto que entra o conceito de “mãe suficientemente boa”, elaborado por Donald Winnicott. Segundo Patricia, essa é a figura que equilibra presença e ausência, oferta e frustração. “É preciso oferecer, mas também frustrar”, explica.
A frustração, segundo ela, é uma parte essencial da formação psíquica. “É na falta que o bebê começa a simbolizar. E simbolizar é o que permite brincar, imaginar e aprender”, diz. Além disso, é por meio dessa experiência que ele começa a reconhecer a realidade, saindo do estado de prazer plenamente satisfeito. “Esse processo é o que humaniza a criança e a insere na cultura.”

Alimentação infantil: ansiedade, vínculo e desenvolvimento
Ao falar sobre alimentação nos primeiros meses de vida, Patricia explica que esse processo vai muito além do ato biológico de nutrir. Segundo ela, quando a mãe oferece o seio, existe ali uma “onda de sentido e continência” que possibilita ao bebê a chamada experiência de satisfação. “O alimento aquece o corpo, mas o olhar aquece a alma”, afirma. “O bebê se vê no olhar da mãe, e a mãe se reconhece no olhar do filho. Afeto e alimento caminham juntos desde o começo — separar um do outro pode ser muito difícil.”
Na prática clínica, ela observa que as queixas relacionadas à alimentação, ao sono e ao desfralde aparecem com frequência nas entrevistas iniciais com os pais. Para Patricia, esses marcos são reveladores. “Eles nos dão pistas importantes sobre como essa relação inicial entre pais e bebê se estabeleceu”, explica.
Entre as falas mais recorrentes estão fantasias maternas de que o leite não sustentava o bebê, ou relatos de desespero porque a criança não conseguia “pegar” o peito. “Para muitas mulheres, ver o ganho de peso na consulta pediátrica é vivido como uma espécie de prêmio, a validação de que estão fazendo tudo certo”, diz Patricia. “Por isso, a alimentação se torna rapidamente um campo de grande pressão emocional sobre as mães.”
Ela destaca também o peso dos julgamentos dirigidos às mulheres que não conseguem amamentar. Para ela, esse preconceito precisa ser enfrentado com cuidado e acolhimento. “Uma mamadeira dada com afeto, com troca de olhares, com presença emocional, também é uma excelente base para a constituição afetiva do bebê”, afirma.
A ansiedade se intensifica novamente na introdução alimentar. Surgem dúvidas sobre o que oferecer, quanto oferecer e como lidar com a resistência da criança. “É nesse momento que vemos aparecer recursos como chantagens, telas ou promessas, usados pelos pais já tomados pelo desespero diante da recusa ao alimento”, observa Patricia.
Ela cita o caso de um paciente de 14 anos que, desde os 5, substituía refeições completas por miojo com requeijão — escolha permitida pela mãe, que acreditava que “tudo era comida”. Esse quadro se manteve até os 13 anos, quando o aumento de peso se tornou preocupante. Ao investigar a história dessa dupla, surgiram elementos comuns: dificuldades na amamentação, ausência de rede de apoio, desconhecimento sobre alimentação infantil e um cansaço profundo que levava a atalhos. “A lógica era: a barriga estando cheia, alivia-se a ansiedade de todos, mesmo que só por algumas horas”, explica.
Para Patricia, esses relatos ilustram o impacto do início da vida sobre toda a trajetória emocional e corporal do indivíduo. “Os primeiros anos são fundamentais para o desenvolvimento físico, social e psíquico”, afirma. “A tarefa parental é exaustiva, mas é nesse vínculo — sustentado pela alimentação, pelo afeto e pela presença — que a relação da criança com o próprio corpo e com o mundo começa a se formar.”
Conclusão
Os primeiros anos de vida representam um período de intensa construção subjetiva, no qual cada gesto de cuidado, cada olhar e cada oferta de alimento compõem as bases do desenvolvimento emocional, social e corporal da criança. Na alimentação, muitas vezes reduzida a um ato biológico, revela-se também uma linguagem afetiva, carregada de sentido e capaz de sustentar — ou fragilizar — os vínculos iniciais.
A partir das experiências relatadas por Patricia, fica evidente que a parentalidade é uma tarefa complexa, exaustiva e repleta de desafios, mas também profundamente transformadora. Não existem caminhos perfeitos. O que existe é a necessidade de presença, de apoio e de um olhar menos julgador sobre as escolhas e limitações de cada família. Como lembra a especialista, “é na troca, na disponibilidade emocional e na construção diária do vínculo que o bebê começa a se reconhecer no mundo”.
Fortalecer a rede de apoio, acolher as fragilidades e compreender que alimentar também é um ato simbólico são passos fundamentais para que pais e cuidadores se sintam mais seguros nessa jornada. E é nessa combinação de afeto, cuidado e conhecimento que se formam sujeitos mais saudáveis — emocionalmente, fisicamente e psiquicamente.
No fim, a vida que começa no colo se expande para o mundo. E esse primeiro acolhimento, tão simples e tão profundo, acompanha a criança por toda a existência.


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